quarta-feira, 27 de maio de 2015

Ela não bebe leite


Todos os dias descia do metrô às 07h30, caminhava 50 metros até a faixa de pedestres e do outro lado da rua atrás do balcão lhe era servido um café com muito açúcar e pouca simpatia. O açúcar incomodava mais que as poucas palavras do balconista, simpatia às 07h30 é para poucos. Com o copo descartável queimando os dedos saia apressada pelas ruas do centro.
Passadas algumas semanas quando ele a via atravessando a faixa já servia o café e o apoiava no balcão abrindo espaço entre os clientes, sem pedir licença e sem responder ao agradecimento recebido quando ela alcançava o copo, mas nunca a deixara esperando.
A silenciosa sincronia foi se aprimorando. Se avistavam às 07h30, cada qual do seu lado da rua. Ele enchia e apoiava o copo no balcão. Ela separava as moedas e atravessava a faixa. Frente a frente ele apontava o copo enquanto ela como quem brinca de escravos de Jó tirava o café e deixava o dinheiro ficar.
Nunca mais disseram uma palavra.

Hoje seu copo sobre o balcão tinha um café apagado.
Leite?
Ela não bebe leite
Era grave.
Mas antes de pronunciar alguma palavra ela deixou sobre o balcão algum dinheiro a mais, como quem abraça um amigo que cometeu um equívoco em um dia ruim.
Saiu apressada e duas quadras depois, na certeza de não ser pega em flagrante, esticou seu copo a um viciado que passava ainda em barato. Ele olhou desconfiado para o copo, resmungou, despejou o conteúdo no chão e seguiu com o copo vazio. Ela concordou com a atitude 'Leite, né? eu sei, é foda!'
Dia de pouca sorte na região central paulistana.